a risada rouca de pai ecoa pelo tempo como uma mandala sonora
à luz da lua, dos postes, de um celular escuro, me pego olhando pra o nada e sentindo o sopro das asas do homem que agora voa com suas asas imensas. os faróis dos carros, condensados com a fumaça do cigarro de melancia que ando fumando, trazem novamente a memória de quem me trouxe pra cá — junto de mãe, claro. fico lembrando de todas as risadas que demos juntos, que ecoam pelo tempo (o meu, o dele, do tempo) como uma mandala sonora, que vai, que volta, que vem, que vai.
pai, uma vez, numa das oficinas de teatro que dava cidades afora, apaixonou por uma flor do cacto em um muro. todo dia ele acordava e ia ver se ela abria. nada. um dia, aliás, uma noite, por acaso, naquelas de sair fumando seu baseado madrugada adentro, foi atrás dela e descobriu que ela só se abria durante a noite: “é que de dia ela esconde a beleza dela”.
sempre que conversávamos no mato, eu desafiava ele em alguma pergunta…, sei lá, difícil, mas sua vasta literatura me derrubava.
“pai, me ensina a ser palhaço?”; “isso não se ensina, seu bosta!”
“pai, me ensina a existência?”; “não posso, só posso dar conselho: é o medo, meu filho”
pai não ensinou a ser palhaço e nem por que somos ou estamos, mas ensinou outras coisas que gosto de listar:
- homem voa;
- cor tem som;
- que a gente deve lutar mesmo se contra moinhos de vento;
- que devemos deixar nossas luzes brilharem enquanto tivermos uma.
foi por meio da voz rouca, da risada rasgada, dos gritos de bravo! ao final das grandes apresentações que assistíamos, dos postais que ele enviava todo ano quando viajava seu mundo todo com mãe, de todas as peças de teatro que criou, que aprendi que eu devo deixar minha luz brilhar para iluminar o caminho dos que vêm atrás. como ele fez com larissa também, mas isso é assunto para outro dia, porque irmã ainda me paga!
enquanto ele voa por aí, minha casa também voa sempre que abro a janela, a terra voa me carregando pelo espaço e o meu pensamento voa procurando seu abraço.