pequeno mapa dos horrores

sávio não é alguém que preenche seu tempo com muita ocupação. gosta de viver sua rotina na aridez de seu apartamento — morava com seu pai, que decidiu voltar para o interior para cuidar de sua mãe e lá ficou. todos os dias assenta em seu escritório com a vista da varanda, vê a mesma senhora passeando com o cachorro no mesmo horário, os porteiros conversando e o passar da vida sem muita pressa.
acorda, pratica yoga, toma banho e começa sua rotina com um iogurte e granola ao lado. o ápice do seu dia é a hora do almoço, quando normalmente come uma sopa, ouvindo sua playlist preferida. seus rituais terminam quando, às 17h, bate seu ponto.
neste dia, sávio decidiu ir pr’um bar no quarteirão de cima de sua casa. abriu o armário com a porta meio torta — um erro de cálculo que nunca foi consertado -, escolheu uma camiseta pouco gasta, um blazer escuro, um tênis alaranjado e subiu a rua.
o bar estava mergulhado em uma penumbra suave, acentuada pelas luzes neon que emolduravam as paredes com aqueles tijolos aparentes. o som abafado pairava no ar, misturado com o ruído de copos, garrafas e dos goles. a cortina de veludo azul no palco parecia uma barreira que isolava o lugar do resto do mundo.
as pessoas pareciam mais ansiosas do que o normal. um homem de meia idade cantarolava no balcão tentando achar alguém para dividir sua tristeza, sem saber que não existe calvário com lugar para dois.
“agora no mundo só tem viadinho!”, resmungou uma senhora no alto de seus 60 e poucos anos, mas que parecia ter rodado seus dias em estrada de terra sem pegar nota, ao tentar aproximação com sávio, em vão.
ele se esquivava de quaisquer conversas, enquanto tomava um coquetel. não queria dividir sua tristeza, porque ele sabe que não existe calvário com lugar para dois.
na verdade, tentava achar qualquer lembrança que tinha de ricardo, mas sua cabeça já era um pequeno mapa dos horrores.
de repente, uma sensação de alívio e conforto ao sentir uma presença atrás dele. um rapaz esguio, com uma roupa monocromática azul clara, o surpreende, puxa sua cadeira de rodas e o leva para seu quarto. sávio estendeu sua mão, tomou os remédios prescritos pelo psiquiatra do local e dormiu com um sorriso de uma cabeça leve, que já não tinha mais tristeza, apenas algumas boas lembranças.
é que hoje, sávio não preenche seu tempo com muita ocupação. ele vive sua rotina na aridez da memória.